LUIZ OLAVO BAPTISTA
SUMÁRIO:
I – ASPECTOS DE DIREITO COMPARADO
1. PROTEÇÃO DERIVADA DAS OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS
2. RESPONSABILIDADE EXTRA-CONTRATUAL
3. A PROBLEMÁTICA DA ALOCAÇÃO DOS RISCOS
II – ASPECTOS DE DIREITO INTERNACIONAL
A proteção do consumidor e a responsabilidade pelo produto são a mesma noção, mas colocadas em tempos e sob ângulos diferentes.
Suas raízes são remotas na história do Direito. Domat e Pothier(1) já escreviam sobre o tema da responsabilidade dos vendedores, arquitetos, artesãos, citando passagens do Digesto que tratavam do assunto, e no Código de Hammurabi há, também, referência à matéria.
Trata-se, sem dúvida, de campo em que a noção de Justiça inspira o legislador na mesma medida em que a idéia de ordem social. O que busca é assegurar que os fornecedores em geral não fujam do honestum vivere, pratiquem o suum quique tribuere, mas, sobretudo, que alteri non laederunt.
Dessa forma vamos encontrar no Direito Comparado diversos tratamentos do tema, influenciados que foram os legisladores por circunstâncias próprias de seus países.
Encontraremos também, em nossos dias, uma preocupação com os efeitos internacionais das práticas ligadas à garantia de produtos e serviços e à proteção dos consumidores.
Provavelmente com a revolução industrial e o advento da produção em massa, cuja conseqüência em nossos dias foi a implantação da “sociedade de consumo”, é que a necessidade de regulamentar a responsabilidade pelo produto de outra maneira, nova, surgiu. É que o consumo em massa de produtos redundava em problemas para amplas camadas do público – os consumidores – quiçá cunhando-se por isso a expressão “proteção ao consumidor” para distinguir a nova maneira de tratar o problema da responsabilidade pelo fato do produto. Essa tem sido associada à idéia do chamado Direito Social(2).
A origem desse enfoque jurídico – e regulamentação pertinente – podem ser encontrados no curso da história do Direito, primeiro numa vertente individualista e particularista. Dessa, nasce outra, mais recente, de tratamento do que se convencionou chamar de interesses difusos, de massa, coletivos, ou, se preferirem, plurais. Ambas, creio, de um modo ou outro, decorrem da idéia de abuso de direito, visando eliminar os efeitos perversos que uma aplicação formalística e literal das regras jurídicas havia gerado.
Primeiro havia a idéia clássica, advinda do Direito Romano (que por sua vez ecoava ou refletia o que outros povos também pensavam à época), da responsabilidade pelas conseqüências dos danos decorrentes da desconformidade de algum objeto de venda (quanti minores), ou de vício oculto do mesmo, ou ainda, dos acidentes no uso de objetos, oriundos de defeitos de projeto ou fabricação ou do seu uso (lex aquilia).
Era o problema do indivíduo contra o indivíduo. E os casos concretos, a regulamentação, a doutrina – mostram isso muito claramente. A produção, a distribuição, tudo ocorria a nível individual. Assim também o tratamento jurídico.
Nos tempos pré-sociedade de massas, as grandes correntes jurídicas da sociedade ocidental, tendo suas raízes na tradição do Direito Romano, do qual as separaram séculos de feudalismo e desordem social, tratavam, no plano individual, da responsabilidade pelo fato do produto, e da responsabilidade do vendedor, como fenômenos separados. As respostas localizavam-se no âmbito do relacionamento existente entre o produtor ou vendedor e o adquirente: portanto, bilateral.
É com a produção em massa – e conseqüentemente o consumo – que ocorre a inovação da proteção jurídica tornar-se, também, de massa. Os meios de produção – agora de massa – são objeto da mesma regulamentação que introduz as ações coletivas (class actions, as restrições a certas práticas comerciais etc. O mesmo movimento massificador, do lado dos produtores ou vendedores, havia criado as cláusulas – tipo, as condições gerais de venda, os contratos-padrão.
Ao abordar este tema, parece-nos natural que os aspectos de Direito Comparado antecedam aqueles relativos ao Direito Internacional. Com efeito, não houvera diferenças entre os direitos dos diferentes Estados e não haveria necessidade de se recorrer ao conflito de leis e disciplinas afins, que se reúnem no Direito Internacional Privado.
Para efeito de tornar clara esta exposição e dadas as suas limitações procurarei agrupar as tendências do regime jurídico da responsabilidade pelo produto e da proteção do consumidor para examiná-las em primeiro lugar. Depois abordarei os aspectos de Direito Internacional.
I – ASPECTOS DE DIREITO COMPARADO
Dois temas destacam-se no panorama da proteção do consumidor: a existência de padrões legislativos em diversos países, que se podem reconhecer pelas semelhanças que apresentam, e o nascimento da primeira regulamentação internacional da matéria no seio da Comunidade Européia.
A) Padrões legislativos
Numa análise dos padrões legislativos devem tecer-se algumas considerações preliminares sobre a evolução comparativa dos regimes jurídicos da responsabilidade pelo produto.
a) Evolução comparativa
A marca das mudanças tecnológicas e econômicas está presente na moderna organização da produção e distribuição. Os conceitos da total quality do kanban, a automatização da produção, fazem-se presentes na evolução industrial. Enquanto isso, os mecanismos de distribuição também mudam. Essa situação difere tanto daquela existente antes da I Grande Guerra, quanto a que então existia difere da que antecedeu a Revolução Industrial. Os instrumentos jurídicos para controlar os efeitos dos azares e incertezas, das imperfeições da produção e dos métodos de distribuição dos produtos tiveram que se adaptar. A noção de contratos de massa, o uso universal das “condições gerais de venda”, mesmo as ações coletivas no campo do Direito do Trabalho ou para a defesa dos chamados interesses difusos, respondem a essas novas necessidades do ser humano, que, além disso, convive hoje com um número muito maior de seus semelhantes que os próprios avós.
No campo da proteção ao consumidor, vemos a responsabilidade individual do produtor face a cada indivíduo consumidor ser substituída por outra, coletiva, frente à massa dos consumidores. A preocupação da justiça nas relações humanas, a necessidade de ordem e paz social, fazem com que o legislador tenha que se preocupar com os acidentes derivados do uso de produtos, aumentando a proteção ao consumidor – e tornando os produtores como que os seguradores de sua produção face aos usuários.
O encontro dessas forças divergentes da produção, distribuição e consumo vem resultando num vetor semelhante nos diversos sistemas jurídicos, que é a reforma pela via tanto judicial quanto legislativa das regras aplicáveis às relações de produção, distribuição e consumo. O atual Código de Defesa do Consumidor brasileiro representa uma síntese de tudo o que se poderia ter escrito de favorável ao usuário dos produtos. Assim, ao encararmos os elementos comuns aos diferentes sistemas jurídicos, eles nos parecerão familiares.
A primeira identidade é no campo do Direito que embasa as soluções: o das obrigações, especialmente os contratos.
1. PROTEÇÃO DERIVADA DAS OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS
Na teoria dos contratos, remédios para as queixas dos consumidores têm sido encontrados, tanto do Direito anglo-saxão, como no francês. Procura-se beneficiar os consumidores com a estipulação no contrato – real ou legalmente presumido – de garantias ao produto para o fim a que destina, e no seu uso normal.
EXTENSÃO DOS EFEITOS DO CONTRATO A TERCEIROS
A forma como essa evolução ocorreu nos países da common law foi através do rompimento do que chamam de privity of contract, isto é, a limitação dos efeitos do contrato às partes. Essa limitação opera no sentido vertical (vendedor e comprador), pois, nos países anglo-saxões, a responsabilidade pelas garantias expressas ou implícitas não descendo ao longo da cadeia de produção-fornecedores de partes e peças, produtor, distribuidor, varejista, os contratantes seriam responsáveis apenas para com seus contratantes.
No decorrer do tempo, essa teoria vindo a se romper, a responsabilidade descia ao longo da cadeia de produção, abrangendo os que se relacionavam com um dos contratantes e, mais ainda, estendia-se horizontalmente a pessoas ligadas ao comprador (seus familiares, por exemplo).
Curiosamente, a mesma evolução aparece no Direito francês.
No Direito alemão e holandês a solução é ligeiramente diversa, pois há regulamentação específica para certos produtos e a tendência da Jurisprudência é no sentido de privilegiar o sistema da responsabilidade extracontratual, sendo o marco desta tendência uma decisão da Corte Suprema alemã que expressamente rejeitou a construção doutrinária da Vertauenshaftung em 1968.
ALCANCE DA RESPONSABILIDADE
Outra tendência global é a de fazer com que a responsabilidade pelo produto alcance todos os danos físicos (distinguindo-se claramente dos apenas econômicos, que não alcançaram igual proteção). Quanto a estes, econômicos, particularmente relevantes para e entre comerciantes e produtores, as restrições quanto ao alcance do contrato persistem, como o demonstra por exemplo o Uniform Commercial Code dos EUA.
No tocante às cláusulas limitativas de responsabilidade (ou dela excludentes), de que trata o art. 25 do nosso Código, são em geral vedadas nos negócios com o consumidor final, mas poucas vezes entre comerciantes e produtores, como vemos ocorrer na Holanda, França, Alemanha, em certas províncias canadenses e em muitos Estados dos EUA.
2. RESPONSABILIDADE EXTRA-CONTRATUAL
A responsabilidade extracontratual, à qual correspondem os torts na common law, é o segundo braço do sistema de proteção ao consumidor.
Pode-se detectar o fato de que são o produto defeituoso e suas conseqüências que atraem mais o interesse dos tribunais, legisladores e doutrinadores. Por isso, aí se operou a maior mudança no tratamento jurídico do problema. Já os defeitos de concepção ou falhas na informação têm merecido menor atenção, embora haja sido definido um dever de informação sobre o uso do produto e os riscos dele decorrentes, bem como o dever de desenhá-lo de modo a ser seguro (e não só adequado ao fim a que se destina, no uso normal).
Claramente segundo essa evolução, o produtor deve aumentar seus estudos, pois o grau de previsibilidade é um elemento que opera contra ele, na apuração de sua culpa.
Finalmente, a evolução do modelo tradicional deu-se do modo mais acentuado no campo da prova, que cabia inicialmente ao queixoso. Uma construção jurisprudencial ocorreu em vários países estabelecendo certas presunções de responsabilidade, como a do guardião da coisa em Direito francês, o sistema da res ipsa loquitur do Direito norte-americano e inglês, a prova prima facie ou Anscheinbeweis dos alemães, culminando com a pura e simples reversão do ônus da prova, que existe na Alemanha e Holanda, assim como no Brasil.
Com efeito, na medida em que o ônus da prova se desloca do queixoso para o demandado, a situação daquele torna-se melhor. Mas nesses países e nos casos em que ocorre a inversão do onus probandi, este é escalonado, pois o distribuidor, o varejista e o produtor têm deveres diferentes, divergindo portanto o grau de suas responsabilidades face ao grau de cuidado que devam ter perante o consumidor final.
Culmina a tendência, com o abandono da necessidade de prova da falta, no sistema americano da strict liability.
A TENDÊNCIA DA “STRICT LIABILITY”
Mas é para a chamada strict liability que parecem se orientar todos os sistemas jurídicos, sendo essa tendência comum, embora partilhada em graus diferentes pelos que a adotaram. Os norte-americanos enveredaram muito mais a fundo, nesse caminho, que, por exemplo, europeus ou canadenses; na Europa, os alemães estudaram mais o tema que os franceses.
A existência de um bom sistema de seguridade social parece ter sido sempre um freio ao desenvolvimento das normas específicas de proteção ao consumidor – ao menos no capítulo da responsabilidade pelo produto.
CONCURSO DE CULPAS
O concurso de culpas, ignorado no caso da strict liability, ainda sobrevive em certos casos, embora limitadamente. Por exemplo, quando alguém, alérgico, usa determinado produto e sofre as conseqüências da sua alergia, tem-se considerado (em alguns casos) como ocorrendo uma idiossincrasia do queixoso, que escusaria o produtor – embora em outras oportunidades o produtor tenha sido responsabilizado por não informar a fórmula do produto, que teria propiciado ao alérgico evitar o seu uso.
Outro aspecto que se deve considerar é a tendência dos tribunais norte-americanos de considerar em o concurso de culpas como fórmula que permite partilhar o ônus do dano, mas não de barrar a cobrança da indenização, o que era tradicional na common law.
RESPONSABILIDADE “SUI GENERIS”
Outra noção que surge com força é a da responsabilidade dita sui generis. Como se mencionou, a noção imanente na responsabilidade pelo produto é a falta de segurança no seu uso. Há uma semelhança grande nos diferentes países no tocante ao abandono da distinção entre o dano de origem contratual e extracontratual, em favor da idéia de que é o defeito em si mesmo a fonte da responsabilidade – são as obligations de securité, Verkehrssicherunsgsplichten e warranty of safety que operam tanto no campo da responsabilidade extra, como da contratual, demonstrando que a raiz dessa nova tendência é a fixação da responsabilidade na empresa.
Com efeito, se lermos o art. 2º do nosso Código do Consumidor podemos ver ali, na descrição do responsável perante o consumidor, certos elementos característicos da empresa: “fornecedor é toda a pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados que exercem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”.
Destarte, pode-se notar que, tanto aqui no Brasil como nos diferentes sistemas jurídicos europeus e norte-americanos, a responsabilidade perante o consumidor, difusa, hoje difere da responsabilidade contratual assumida perante um consumidor específico, em contrato ou por outra forma.
É essa situação que se pode chamar de responsabilidade sui generis.
3. A PROBLEMÁTICA DA ALOCAÇÃO DOS RISCOS
Há fundamentos políticos para a evolução deste ramo do Direito, que também é preciso destacar.
O problema fundamental é o da alocação dos riscos, inevitáveis, entre os participantes do concerto social. Arcarão com eles os fornecedores ou os produtores? Em que grau? Qual a definição e alcance da segurança que será dada ao consumidor? Que efeitos isso terá sobre a produção e o custo dos produtos?
Tudo indica é que a idéia de que o consumidor deve ser protegido vem predominando, especialmente face aos produtos de massa, e um bom exemplo dessa posição é a “Resolução sobre os direitos fundamentais do consumidor” das Comunidades Européias(3).
A pedra de toque dessa proteção, do ponto de vista jurídico, é a noção de defeito – que adiante examinaremos – conjugada à possibilidade de soluções coletivas, típicas da idéia da class action, do estabelecimento de padrões de segurança e qualidade (safety standards), da noção de cheapest risk spreader(4), do recurso ao collateral estoppel(5).
A contrapartida dessa opção política de aliviar os consumidores do risco do produto é que produtores e distribuidores devem ser incentivados a incrementar a qualidade e os padrões de segurança da mercadoria e dos serviços. Terão que optar entre a chamada self insurance e o seguro de responsabilidade civil. Aí, nestas duas hipóteses, o custo é socializado, pois esse acresce ao preço do produto, fazendo com que cada consumidor pague uma parcela do ônus incorrido pelas eventuais vítimas. Porém, argumentam os estudiosos, a necessidade de competição levará à busca de melhor qualidade e produtividade, fazendo com que o custo diminua. Isso, dizem, justifica a opção por essa fórmula no lugar daquela que favorece o Estado a assumir a responsabilidade (em geral através de seu sistema previdenciário). Isso, porém, não significando que o Estado ficasse omisso diante do problema.
É o que veremos ao examinar, a seguir, o papel da regulamentação estatal, fixando padrões de qualidade.
b) O papel dos padrões de qualidade ou padrões legislativos
Podemos dividi-los em dois tipos: os que visam à produção e os que miram ao consumo. É para permitir a competitividade que se optou por este caminho, desde o passado, quando se regulamentou a produção e distribuição de alimentos ou o transporte público. Por isso, essa tendência tem estado presente nas regulamentações da proteção ao consumidor na maioria dos países desenvolvidos, ainda que se possam encontrar exemplos remotos na história(6). Hoje não são os casos – felizmente raros – de conduta criminosa, contemplada na legislação penal da maioria dos países, que merecem a atenção do legislador.
Dá-se ênfase à definição de deveres concernentes ao desenho e concepção, produção e apresentação. Com efeito, atualmente são encontradas, na maioria dos países, leis regulamentando as matérias-primas ou a composição dos gêneros alimentícios, a proibição do uso de certos aditivos, os controles sobre a indústria farmacêutica, sobre dispositivos de segurança para automóveis, aviões, ferramentas, equipamentos etc.
Destaque-se que tais regras dirigem-se sempre a setores industriais determinados e não têm caráter genérico.
Quanto ao processo de produção, normas de higiene controlam a qualidade do produto, outras determinam a qualificação de operários e responsáveis, e daí por diante.
Finalmente, no que concerne à apresentação, regras determinam os dizeres obrigatórios em rótulos e etiquetas, o conteúdo e tipo de publicidade, a necessidade de instruções para uso, avisos úteis ao consumidor e advertências quanto a riscos potenciais.
Encontramos ainda normas relativas a métodos de transporte e armazenamento, especialmente face a produtos perigosos – basta ver circulando por estradas de todo o mundo caminhões com os dizeres “gás venenoso” ou “produto inflamável” com placas indicativas do risco, adotadas universalmente, para que possamos ter idéia da permeabilidade dessa regulamentação.
Leis como o Consumer Product Sajety Act(7) nos EUA, o Consumer Protection Act na Grã-Bretanha, são exemplos dessa regulamentação, cujas características são a prescrição de determinadas condutas destinadas a obter certos resultados, ou a exigência de licenças, autorizações, fiscalização, aprovação etc. Aí o foco é sobre o produto e não sobre o setor industrial ou o consumidor, embora visem à proteção deste.
Por último, temos normas destinadas a regular a atuação no campo do direito dos produtores e vendedores: trata-se dos dispositivos que vedam certas cláusulas ou tipos de contratos, vistos como danosos ao consumidor ou fruto de desequilíbrio nas respectivas posições.
Ao contrário do conteúdo geral do Código do Consumidor – e de leis do mesmo gênero – essas regras dirigidas ao produto representam ênfase no dirigismo(8).
1. INFRAÇÕES E SANÇÕES
Pois bem, vistos os padrões legislativos cabe examinar como foi tratado o problema da infração aos mesmos.
Há sanções de várias naturezas, penal, administrativa (perda de licença, proibição de venda do produto ou de exercício da atividade etc.) e aquela que mais interessa ao consumidor, de natureza civil, consistente na obrigação de indenizar, muitas vezes acrescida de multa (por exemplo os punitive damages)(9).
Nos EUA, o descumprimento dos padrões legais, ainda que não resulte em dano para terceiros, é punível conforme estabelecer a legislação – por exemplo, a referente a alimentos, cosméticos e produtos farmacêuticos(10). Além das sanções de caráter penal, inclui as de natureza civil, sendo excluída a defesa baseada no concurso de culpas, de modo que a falta, por si só, gera a sanção, independentemente do resultado.
No Canadá, a violação dos padrões legais acarreta como sanção a inversão do ônus da prova a favor do queixoso. Embora houvesse poucos casos há uma dezena de anos, o número crescia, sugerindo a aplicação cada vez mais freqüente dessa sanção.
No Direito inglês, há uma distinção entre as leis que criam um dever específico – cuja violação dá origem ao tort – e leis que permitem à vítima buscar os remédios da common law (negligence, misrepresentation etc.). No primeiro caso dispensa-se o queixoso de provar a falta, bastando-lhe a prova do nexo entre o evento e o prejuízo, para que este possa ser ressarcido. Essas normas são conhecidas como strict statutes, sendo exemplo o Consumer Production Act (de 1961) que estabelece uma obrigação negativa de venda de mercadorias que não atendam a certos padrões (non compliance) cujo inadimplemento dá causa a uma ação(11). Já no Food and Drugs Act 1955 estabelece-se que se alimentos forem servidos contra disposições da lei o consumidor deve provar a existência de uma implied warranty ou da negligence. Outra norma, o Health and Safety at Work Act 1974, impõe às pessoas que projetam, produzem, fabricam, exportam, importam ou fornecem produtos para uso no trabalho, que tomem medidas reasonably practical para garantir que esses bens sejam seguros. Nota-se, face ao Direito norte-americano, maior apego à tradição da common law, pois a definição dada pela lei às condutas exigidas servirá de base para os Tribunais decidirem se os padrões da common law de conduta adequada do homem razoável foi atingido, e a partir daí conceder indenização.
No Direito holandês, a simples violação de um padrão de conduta ou qualidade estabelecidos pela lei constituem um ilícito civil, independentemente do resultado, desde que o padrão tivesse sido estabelecido para proteger uma classe de pessoas que inclua o queixoso.
Na Alemanha a desobediência a um padrão legal constitui presunção relativa de culpa (isto é, inverte-se o ônus da prova, cabendo ao infrator provar que sua ação era desculpável). A Jurisprudência, analisando o art. 828(2)BGB, entendeu que a infração de uma norma estabelecida para a proteção das pessoas constitui causa de ação desde que uma falta possa ser identificada, sendo que os juízes entendem que na infração é presumida uma falta(12). Mais, deve o réu provar o que ou quem causou a sua infração, como razão para escusar-se da falta presumida. As leis especiais têm, além disso, especial relevo porque prevêem indenização por perdas puramente econômicas, que não são admitidas no regime da responsabilidade civil ordinária(13).
Na França, como todos sabemos, há a possibilidade de uma só ação resolver simultaneamente os aspectos civis e penais do mesmo caso. A vítima situa-se como partie civile, e agindo com o Ministério Público, reivindica a indenização enquanto aquele pede punição da conduta. Essa peculiaridade favorece o uso da noção de negligência, pois o conceito é comum ao Direito Penal e Civil. No tocante aos padrões legais, a solução aproxima-se da strict liability, sendo, para nossa terminologia, caso de responsabilidade objetiva – portanto, a simples presença de produtos ou serviços considerados perigosos acarreta para os responsáveis, independentemente de culpa, o dever de indenizar.
2. ALCANCE DOS PADRÕES LEGISLATIVOS
Muitas vezes encontramos casos em que, embora o produto ou serviço hajam sido oferecidos e produzidos de acordo com as normas prescritas, ocorrem danos. Convém examinar como, no Direito Comparado, se responde a essa situação. Por outro lado, o efeito dos padrões legislativos no espaço deveria ser, ao menos teoricamente, limitado ao território do estado que os edita. Entretanto, é conhecido o fenômeno da extensão extraterritorial da soberania em determinados tipos de legislação(14) que nos conduz também ao exame desse aspecto das normas de proteção ao consumidor.
No Direito francês estabeleceu-se que os padrões legais constituem requisitos mínimos, razão pela qual a responsabilidade civil do fabricante não era afastada pela obediência aos mesmos(15). Da mesma forma, na Alemanha, Holanda, Inglaterra, Canadá, EUA, considera-se que a obediência aos padrões legais por si só não escusa o fabricante ou comerciante da responsabilidade civil. Mas é claro que terá o seu peso num julgamento da conduta do produtor ou distribuidor, quando, para se apurar a sua responsabilidade civil se tiver que decidir se agiu, ou não, com as cautelas que dele a sociedade esperava. Por outro lado, na medida em que um organismo governamental estabelece e fiscaliza o cumprimento de determinados padrões, este pode ser chamado a integrar a lide, como co-responsável, como já ocorreu com uma empresa de serviços públicos francesa(16).
Já no que concentre ao efeito territorial das normas de proteção ao consumidor, vemo-nos diante do alcance territorial da lei, que invade outra soberania.
Por exemplo, a definição do art. 3º da Lei 8.087/90, de que: “fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira … (omissis) … que desenvolvem atividades de … (omissis) … importação, exportação … “; determina claramente que, primeiro, visa-se atingir pessoas do exterior – portanto fora do alcance da nossa soberania – tanto na qualidade de consumidor, como naquela de produtor, e com efeito o art. 2º da mesma lei diz apenas que: “consumidor é toda a pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”; não distinguindo o consumidor sob a soberania brasileira daquele do exterior.
Uma lei francesa sobre a propaganda de produtos farmacêuticos é mais expressa, pois afirma aplicar-se aos anúncios feitos na França, e aqueles feitos no exterior em francês ou que possa vir a ter ao território francês. Essa medida tem uma amplitude que é explicável pelo interesse em proteger o consumidor francês, ao contrário da lei brasileira que pretende proteger qualquer consumidor em qualquer país.
Um estudo das normas de proteção ao consumidor permite dividi-las nas que visam a produção, e nas que miram ao consumo. As primeiras deveriam aplicar-se aos produtos feitos no Estado qualquer que fosse seu destino, enquanto as segundas podem aplicar-se aos produtos que lá são vendidos independentemente da origem. Normalmente os países procuram expressamente limitar a primeira hipótese, para não diminuir a sua competitividade internacional. Mas voltaremos a este tema quando da análise do conflito de leis.
B) Harmonização do Direito Europeu
Após várias tentativas, o Conselho da Comunidade Européia, em 25.07.85, editou uma Diretriz(17) em que, atendendo às propostas da comissão de 1976 e 1979, da Assembléia de 1979, e do Conselho Econômico e Social do mesmo ano, propõe aos Estados-membros a unificação, ou melhor dizendo, a aproximação de sua legislação a um padrão europeu, que é o da Diretriz que ora vamos examinar.
c) A Diretriz de 1985
Essa Diretriz invoca, como razões (na ordem em que foram escritas) da necessidade de aproximação das legislações, o fato de que a diversidade normativa pode afetar a concorrência, dificulta a livre circulação de mercadorias, pode acarretar diferenças entre o nível de proteção ao consumidor contra danos a sua saúde e patrimônio, causados por produtos defeituosos. Por isso, em considerandas preliminares fixa metas para a unificação do Direito nessa matéria, tendo em vista os aspectos seguintes:
Quanto à natureza da proteção, estabelece a Diretriz que só a responsabilidade sem culpa (sans faute) do produtor permite resolver de forma adequada o problema; que esta é só para os bens móveis objeto de produção industrial (excluem-se os produtos agrícolas não processados), inclusive os que se incorporam a imóveis no processo de construção.
No tocante às pessoas que podem ser objeto de ação, ou seja, os responsáveis pelo dano, a Diretriz entende que proteção do consumidor “exige que a responsabilidade de todos os participantes do processo de produção seja engajada se o produto ou a matéria-prima fornecida apresentarem defeito” (grifos/trad.) e pela mesma razão envolve-se o importador de produtos na Comunidade bem como todas as pessoas que coloquem sua marca ou sinal no produto, e o vendedor se o fabricante não puder ser identificado.
Quando há mais de um responsável, todos podem ser objeto dá ação: e “em razão de uma justa repartição dos riscos entre a vítima e o produtor”, este pode se livrar da responsabilidade provando a culpa daquela, ou a ocorrência de fatos que o desonerem. A intervenção de terceiros não afasta a responsabilidade do produtor; a concorrência de culpas com a vítima permite reduzir ou eliminar essa responsabilidade.
A responsabilidade é por danos físicos (morte e lesões corporais) e materiais – esta quanto a bens de uso ou consumo privado, e submetida a uma franquia mínima, para evitar acumulação de ações; não se excluem o pretium doloris ou outros danos morais.
Propõe-se a adoção de um prazo único de prescrição, que seria de interesse da vítima e do causador do dano. Recomenda ainda o estabelecimento de um prazo de garantia para o produto, passado o qual a responsabilidade do produtor desapareceria. É sugerida, por outro lado, a proibição das cláusulas limitativas ou excludentes de responsabilidade.
A extensão da limitação do dano, assim como a existência de proteção em relação a determinados produtos, existentes em certos estados da Comunidade, deveriam ser mantidos, segundo a Diretriz.
Nela também se prevê que o produtor pode livrar-se da responsabilidade em razão do estado dos conhecimentos científicos à época – facultado aos Estados-membros manter ou proscrever essa exoneração de responsabilidade. No caso de introdução da regra, um período mínimo de não aplicabilidade deveria ser estabelecido após a vigência para permitir a igualdade de tratamento comunitário.
Sugere-se ainda a vedação de um teto para as indenizações “em razão das tradições jurídicas da maioria dos Estados”, mas admitindo que a legislação de algum membro da Comunidade prescreva a responsabilidade global do produtor por morte ou lesões corporais desde que o valor seja suficientemente alto para assegurar a defesa do consumidor.
Por último considerando, a Diretriz prevê sua revisão periódica.
Chegamos, assim, aos termos da Diretriz, que no seu art. 1º prevê a responsabilidade do produtor; no 2º, descreve produto “todo móvel, com exceção das matérias-primas agrícolas e dos produtos da caça, mesmo que ele esteja incorporado em outro móvel ou num imóvel”. A eletricidade é também um produto, por definição expressa.
O art. 3º define produtor como o fabricante de um produto acabado, de matéria-prima ou parte componente, e todas as pessoas que se apresentem como tal colocando no produto seu nome ou sinal distintivo. O § 2º deste artigo assimila ao produtor o importador para venda, locação ou arrendamento mercantil, e o distribuidor “no quadro de sua atividade comercial”. No § 3º lê-se que, “se o produtor não puder ser identificado, cada fornecedor será considerado como responsável a menos que indique à vítima, num prazo razoável, a identidade do produtor ou de quem lhe forneceu o produto”. O mesmo se aplica aos produtos importados, se estes não indicarem o importador, visado no parágrafo anterior.
A vítima deve provar o dano, a falta (defeito) e o nexo de causalidade entre o defeito e o dano, segundo prevê o art. 4º.
Já o art. 5º indica que, se “na aplicação da presente Diretriz, várias pessoas são responsáveis pelo mesmo dano, sua responsabilidade é solidária, sem prejuízo das disposições do direito nacional relativas ao direito de regresso”.
O art. 6º define como produto defeituoso aquele que não oferece a segurança que se poderia legitimamente esperar tendo em conta as circunstâncias, especialmente: da apresentação do produto; do uso que se pode razoavelmente esperar; do momento em que foi posto em circulação. Mas acrescenta que um produto não pode ser considerado defeituoso só porque outro mais aperfeiçoado foi introduzido no mercado.
Fixa o art. 7º as excludentes de responsabilidade do produtor, consistentes na prova de que: não colocou o produto em circulação; levando em conta as circunstâncias, o defeito que causou o dano não existia no momento em que o produto foi posto em circulação, ou o defeito surgiu posteriormente; o produto não foi fabricado para a venda ou outra forma de distribuição com fins econômicos, nem fabricado ou distribuído no quadro da atividade profissional do produtor; que o defeito decorre de normas imperativas do poder público; que o estado da arte e da ciência à época da colocação do produto em circulação não permitia descobrir o defeito; por último, que, em se tratando de fabricante de componente, o defeito é imputável ao produto ao qual o componente foi incorporado, ou às instruções dadas pelo fabricante do produto.
No art. 8º encontramos as conseqüências do concurso de culpas, que não exclui a responsabilidade do produtor quando um terceiro também é co-responsável, e que reduz ou suprime a responsabilidade do produtor “tendo em conta as circunstâncias”, quando o dano é causado por defeito do produto e ato da vítima ou pessoa por quem esta é responsável.
O art. 9º define dano para os efeitos do art. 1º, incluindo: morte ou lesões corporais, dano a objeto ou sua destruição (desde que o objeto não seja o próprio produto), respeitada a franquia de 500 ECUS, e se este objeto é de um tipo destinado usualmente ao consumo e tenha sido utilizado pela vítima para seu próprio uso ou seu consumo próprio (este artigo não derroga normas nacionais relativas a danos imateriais).
A prescrição de três anos para a ação de reparação de danos, contada da data em que o queixoso soube ou deveria saber do defeito e da identidade do produtor, é estabelecida pelo art. 10. Dispositivo que ressalva que as normas nacionais em matéria de prescrição não são afetadas pela Diretriz.
O art. 11 trata da decadência, em 10 anos, contados da data em que o produtor colocou o produto em circulação, dos direitos da vítima decorrentes da Diretriz, decadência essa que não opera se uma ação tiver sido intentada.
Proíbe-se a cláusula limitadora ou excludente da responsabilidade decorrente da norma comunitária no art. 12.
Afirma-se no art. 13 que a diretriz não limita nem afasta responsabilidades e garantias contratualmente concedidas que ultrapassem o teor da mesma.
Excluem-se os danos nucleares, em virtude do .art. 14.
O art. 15 prevê diversas reservas que os Estados membros podem fazer: derrogando o art. 2º para incluir os produtos agrícolas ou de caça; por derrogação ao art. 7º, responsabilizar o produtor mesmo se o estado dos conhecimentos técnicos e científicos não lhe permitiram descobrir o defeito à época do lançamento do produto.
O art. 16 prevê que o teto para indenização por morte ou danos corporais não pode ser inferior a 70 milhões de ECUS.
Os arts. 17 e. 18, respectivamente, tratam da vigência temporal da Diretriz e da definição do ECU, enquanto os demais artigos, até o 22, cuidam da entrada em vigor das providências que os Estados devem tomar para adaptar a própria legislação, e, finalmente, para o acompanhamento da execução da norma.
II – ASPECTOS DE DIREITO INTERNACIONAL
Evidentemente, as normas de proteção ao consumidor têm o condão de produzir efeitos fora dos limites territoriais do país, na medida em que o comércio internacional é causa da circulação internacional de muitas mercadorias. Ora é incidindo sobre produtos vindos do exterior, ora protegendo o consumidor estrangeiro. De qualquer modo pode-se dizer que a responsabilidade do produtor segue com o seu produto.
Como as normas relativas à matéria diferem de país para país, há que pensar na solução dos conflitos que possam ocorrer quando mais de uma tende a ser aplicável a determinada situação. Essa ocorre no quadro das regras nacionais ou de convenções internacionais.
A) Conflito de leis
Tratando-se de matéria obrigacional, a regra de conflitos para nós brasileiros é a do art. 9º da LICC: “Para qualificar e reger as obrigações aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”. Essa regra aplica-se a todas as obrigações, contratuais ou extracontratuais.
Tem sido entendido que o lugar da constituição das obrigações é aquele em que elas nascem de um evento, seja ele um acidente ou a assinatura de um contrato. A regra dominante no Brasil seria a lex loci delicti.
A matéria foi controvertida(18), mas tem grande importância prática, pois estabelece um vínculo entre a obrigação e a norma, no caso o Código de Proteção ao Consumidor.
Há outros elementos de conexão, como o demonstra a tentativa de codificação, pela via de tratado, empreendida pela Conferência de Haia.
B) A Convenção de Haia sobre a responsabilidade pelo produto
A Conferência de Haia sobre Direito internacional Privado, em sua 10ª Sessão, de 1964, recomendou que a matéria relativa a responsabilidade civil (extracontratual) fosse tratada, e em 1967, que deveriam examinar separadamente diferentes casos de responsabilidade extracontratual, ocasião em que os EUA propuseram que após os acidentes de trânsito se cuidasse da responsabilidade pelo fato do produto.
Na 12ª Sessão, em outubro de 1972, aprovou o projeto de convenção sobre a lei aplicável à responsabilidade pelo fato dos produtos(19). Aquela Sessão não teve grande repercussão internacional, tendo contado com a assinatura de poucos países, entre os quais não estava o Brasil. O objeto da convenção é a unificação das regras de conflito de leis, conforme explícita o seu art. II: “A aplicação dos artigos precedentes desta Convenção independe de qualquer condição de reciprocidade. A Convenção aplica-se mesmo que a lei aplicável não seja aquela de um Estado contratante”. Portanto, as regras da Convenção de 1972 de Haia se aplicarão, nos países que a adotaram, no lugar das regras de conflito de leis que até então existiram.
O campo de aplicação da Convenção é delimitado pelos arts. 1º a 3º. Estabeleceu-se que a convenção só é aplicável aos conflitos de leis em matéria de responsabilidade por danos causados por um produto, qualquer que seja a natureza do dano (a pessoas, bens, ou prejuízo econômico): “A palavra “danos” (dommages) compreende qualquer dano às pessoas ou aos bens, assim como os prejuízos econômicos; todavia, o dano causado ao produto em si, ou o prejuízo econômico que daí resulta, são excluídos, a menos que se acresçam a outros danos”(20).
Produtos, para a Convenção, compreende todos, naturais, industriais, “sejam eles brutos ou manufaturados, móveis ou imóveis”(21), sendo permitido aos Estados contratantes formular reserva para excluir produtos brutos de origem agrícola, consoante a autorização do art. 16.
A Convenção optou por uma linha de generalização, do que é também exemplo o seu art. 3º, que define as pessoas cuja responsabilidade está sujeita às regras que estabelece:
“1 – fabricantes de produtos acabados; 2 – produtores de produtos naturais; 3 – fornecedores de produtos: 4 – as outras pessoas, inclusive os reparadores e depositários, que constituem a cadeia de preparação e distribuição comercial dos produtos.
A presente Convenção se aplica também à responsabilidade dos agentes ou prepostos de qualquer das pessoas enumeradas acima”.
Finalmente, no tocante à competência, determina que: “se aplicará qualquer que seja a jurisdição ou autoridade chamada a conhecer do litígio”(22).
Não vamos entrar em maiores detalhes, pois o que foi dito já basta para explicar o alcance da Convenção. Agora, quanto ao seu objeto, que é a criação de uma regra uniforme para a determinação da lei aplicável, os arts. 4º a 7º é que tratam da matéria.
Aí não há novidades quanto aos elementos de conexão, todos conhecidos e usados em diversos países e épocas, exceto o recurso ao agrupamento desses. Assim, aplica-se o critério da lex loci delicti se coincidir com o domicílio da vítima, ou do estabelecimento principal do réu, o Estado em cujo território o produto foi adquirido pela pessoa lesada(23). Por sua vez, incide a lei do domicílio da vítima se conjugar com a do Estado onde se situa o estabelecimento principal do réu, ou onde o produto foi adquirido pela pessoa lesada(24); finalmente, quando “nenhuma das leis designadas nos arts. 4º e 5º se aplica, a lei aplicável será a do Estado do estabelecimento principal da pessoa cuja responsabilidade é invocada, a menos que o autor não se fundamente na lei interna do Estado em cujo território ocorreu o evento danoso”(25).
Um exemplo tornará fácil de compreender as complexidades da regra conflitual: alguém, cuja residência habitual é a França, compra na Alemanha, onde passa uma temporada, produto alimentar de origem francesa; em razão de defeito nesse alimento, a pessoa cai doente, na Alemanha.
Se aplicarmos o art. 4º da Convenção em exame, a lei alemã será competente, pois ela é tanto a lei do Estado onde o fato danoso ocorreu (a Alemanha) quanto daquele em que o produto foi adquirido (também a Alemanha).
A lei francesa, por sua vez, será aplicável com base no art. 5º (lei do Estado do estabelecimento principal do fabricante e da residência habitual da vítima). Esta solução – aplicável a lei francesa – prevalecerá sobre a primeira – adoção da lei alemã – porque o art. 5º aplica-se “não obstante as disposições do art. 4º”(26).
No tocante ao art. 6º, convém destacar que estabelece uma escolha favorável à vítima, que pode recorrer à lei que melhor acomode seus interesses.
O art. 8º trata do campo de aplicação da lei indicada pela regra de conflito: as condições e extensão da responsabilidade as causas de exclusão da mesma, assim como a sua limitação ou partilha; a natureza dos danos que possam dar lugar à reparação; as modalidades e extensão da reparação; quem tem direito a essa; responsabilidade do comitente pelo ato do preposto; as matérias relativas à prescrição e decadência, inclusive prazos, início e término, interrupção e suspensão. Esta última é matéria importante do ponto de vista prático porque um dos temas clássicos no conflito de leis é a qualificação da prescrição e da decadência (se pertencem ao direito substantivo ou adjetivo), e em razão da diversidade de soluções legislativas, foi preciso prever uma reserva, no art. 16, em matéria de prescrição.
Finalmente, outro ponto controvertido abordado com cautela pela Convenção é o relativo às regras de segurança que se devem apreciar para determinar a responsabilidade do produtor ou distribuidor: a Convenção optou por referir-se àquelas em vigor no Estado em cujo território o produto foi feito, considerando-se aplicáveis opcionalmente: “A aplicação dos arts. 4º, 5º e 6º não é obstáculo a que sejam tomadas em consideração as regras de segurança em vigor no Estado em cujo território o produto foi introduzido no mercado”.
Como disse meu Professor, “o Direito Internacional da responsabilidade dos fabricantes e distribuidores de produtos apresenta e continuará apresentando no futuro dois rostos, um imutável, outro em plena mutação. A responsabilidade contratual continuará regida pela lei do contrato. A responsabilidade delitual virá substituir-se à aplicação sistemática da lex loci delicti um sistema dos mais complexos, fazendo a parte das diferentes tendências modernas”(27).
Na verdade, tanto os autores do projeto que redundou na Convenção de Haia, como os que hoje estudam o problema, encontram-se face ao dilema de saber se é preferível escolher a melhor lei ou aquela que, embora menos adaptada, ofereça maior previsibilidade. A resposta de compromisso parece ter sido boa, ao menos por assegurar maior aceitabilidade e possibilidade de unificação do direito num aspecto tão crucial.
c) Efeitos internacionais da legislação brasileira
Os efeitos internacionais do assim chamado Código de Defesa do Consumidor ainda não foram devidamente estudados, e sequer referidos. Entretanto, são importantes.
A lei faz diversas referências, algumas diretas, outras oblíquas, a estrangeiro, como no art. 3º, que define fornecedor, à importação (arts. 12, 32, parágrafo único, e 3º) e exportação (neste último artigo).
Por outro lado, a definição de consumidor, não fazendo restrições de qualquer natureza visando limitar a proteção a brasileiros e residentes no País, conjugada com a referência a exportador, parece querer incluir no âmbito de sua aplicação pessoas de qualquer outro país. Essas poderão, com base nesse artigo e no 12, cobrar independentemente de culpa, com base na responsabilidade objetiva, danos causados por produtos brasileiros. Não houve a cautela de limitar o valor das indenizações – como na Diretriz européia – o que pode fazer com que decisões de Tribunais estrangeiros mais generosos – como os norte-americanos – levem muitas de nossas pequenas e médias empresas à falência. Se, além desse fator, ajuntarmos a existência de normas processuais como a do collateral estoppel, podemos avaliar a que ponto as dificuldades de produtores devem chegar.
O tradicional remédio das cláusulas limitativas da responsabilidade, tão usadas por exportadores, e que tive a oportunidade de invocar em suas defesas no exterior, foi afastado pelos arts. 24 e 25.
A arbitragem, outra fórmula largamente adotada internacionalmente, e de excelentes resultados para consumidores e fornecedores, também foi inexplicável e injustificavelmente extirpada dos contratos, como se vê do art. 51, VII.
O legislador não teve o bom senso ou a reflexão suficiente para ver que essa atitude aparentemente tão altruísta é altamente danosa para os exportadores de produtos brasileiros que se verão inferiorizados diante de outros produtores que não estão submetidos a tão grandes ônus. Bastaria que num parágrafo ou artigo se estabelecesse que a extensão de tais direitos dependeria de reciprocidade.
Como vimos atrás, a CEE preferiu estabelecer lei uniforme porque, como apontavam os membros do Conselho das Comunidades, a diferença de tratamento seria capaz de “falsificar a concorrência, afetar a livre circulação de mercadorias e acarretar diferenças no nível de proteção dos consumidores contra os danos causados à sua saúde e aos seus bens por produto defeituoso”(28).
Por outro lado, a lei deixou em aberto o problema dos conflitos de leis, que deveria ter regulado, evitando as incertezas criadas pelos termos vagos em que trata da matéria a Lei de Introdução ao CC.
É bem verdade que se poderia criar novo campo para as reservas de mercado mediante a criação de padrões por via de decreto (atendendo ao previsto no art. 4º, II, d), que tornassem difícil a importação. Já a norma do art. 31 estabelece restrição a produtos vindos do exterior ao exigir que sua oferta e apresentação seja feita em língua portuguesa. Um exemplo de produto que não poderia mais ser comercializado no País são os softwares feitos em outros países onde as telas e manuais estivessem em língua estrangeira.
Vários outros aspectos poderiam ser mencionados se o tempo no-lo permitisse.
Maio/1991.